ADVERTÊNCIA

Este Blog contém algumas de minhas ideias, crenças e valores. Por não ter o objetivo de ser referência, não deve ser acolhido como "argumento de autoridade" e, muito menos, como verdade demonstrativa, cartesiana.

Aqui o leitor encontrará apenas reflexões e posições pessoais que poderão ser peneiradas e, por isso mesmo, rejeitadas ou aceitas, odiadas ou amadas. Assim, não espere encontrar fidelidade a alguma linha de pensamento ou a uma ideologia em particular. Permito-me a contradição, a incerteza, a hesitação, a descrença, a ironia; permito-me pensar.

Após as leituras, sei que uns concordarão, outros não, e haverá também os que encerrarão a visita levando uma pulga atrás da orelha. Não me importo. Se causar alguma reação, mesmo o desassossego, considero que atingi o meio. O fim fica por sua conta.

Abraços a todos e boa leitura.

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domingo, 20 de janeiro de 2008

A violência moderna em "Triste fim de Policarpo Quaresma"

Moisés Olímpio Ferreira
O Dicionário Caldas Aulete, entre as muitas citações, define violência como a “qualidade do que atua com força ou grande impulso; força, ímpeto, impetuosidade, irascibilidade, força que abusivamente se emprega contra o direito, opressão, tirania, coação”. Antônio Geraldo da Cunha, em seu Dicionário Etimológico, caracteriza violência como a “qualidade de transgredir, profanar, violar”. Esse tema está presente em toda a extensão de "Triste fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto; é latente e apresenta-se de múltiplas formas.
Logo no primeiro capítulo já nos é possível antever o processo progressivo dessa força impetuosa, irascível, opressiva, tirânica que o protagonista haveria de sofrer. Lembremos que Policarpo, um homem de muitos frutos [nome proveniente do grego formado por polys (muito, numeroso) + karpós (fruto)], era conhecido por todos como uma pessoa séria, honesta, boa, doce, modesta, de propósitos altos e hábitos severos, profundo conhecedor das grandezas do Brasil, fossem na ficção, na poética, na história, na geologia, na mineralogia, na geografia, ou na botânica. Como bem reforça o narrador: “...depois de trinta anos de meditação patriótica, de estudos e reflexões, chegava agora ao período da frutificação”.
Fazendo jus ao seu nome, Policarpo ainda era fiel às tradições, aos “...usos genuinamente nacionais...”; estudou os índios; aprendeu o tupi-guarani com paixão, afinco, e com profundo amor à língua mãe; preferia os pratos brasileiros, como dizia: “A nossa terra, que tem todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessário para o estômago mais exigente”.
Quando se falava em roupas e calçados, Quaresma já tinha a sua opinião: “Visto-me com um pano nacional, calço botas nacionais e assim por diante”. O licor, a banha, o toucinho, o arroz, as flores do jardim, tudo nacional. Em uma única palavra, Quaresma era um patriota!
E foi nesse “espírito” nacionalista que ele quis aprender violão, instrumento que bem acompanharia a modinha, que era a expressão da alma nacional: “Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha”.
Porém, mesmo sendo um brasileiro com tantos frutos apreciáveis, não ficou isento da violação dos seus direitos de escolha, de sofrer a depreciação por uma sociedade alienada e acostumada à mesmice e à burocracia.
Por conta de suas aulas de violão, foi denominado de perdido, maluco, além de julgarem-no estar metido em “malandragens”.
A própria irmã de Quaresma, embora muito ligada a ele, “...não tinha grande interesse pelo violão. A sua educação que se fizera, vendo semelhante instrumento entregue a escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a atenção de pessoas de certa ordem”.
Além do mais, Adelaide, como os próprios irmãos de Cristo, não compreendia Policarpo em nada. Quando se mudaram para o Sossego “...a irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo pelas cousas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira! Seguira-o ao “Sossego” e, para entreter-se, criava galinhas, com grande alegria do irmão cultivador”.
A personificação dessa sociedade desajustada e agressiva bem se apresenta na figura do Dr. Segadas que “...não podia admitir que Quaresma tivesse livros: ‘Se não era formado, para quê? Pedantismo!’”.
Diante de um processo corrosivo do caráter do ser humano, Quaresma possui uma imagem antagônica: representa o indivíduo desenvolvido que, por analogia, deveria ser espelho, ou uma miniatura de uma sociedade evoluída. Antagônico porque a sua condição pessoal feria a pseudo “evolução” - individual, social, econômica ou política - do meio em que vivia.
Quaresma é uma tipificação material paralela à figura de Cristo no âmbito do espiritual. Enquanto Cristo não foi compreendido pelos religiosos e sábios espirituais da sua época a ponto de o crucificarem, Quaresma não foi recebido de modo diferente, o que já prefigura o seu fim.
Nesse personagem, é possível que Lima Barreto tenha despejado a incumbência de carregar a cruz pesada do ser humano evoluído até ao “monte” chamado República, onde seria martirizado pela formação social insana.
Ironicamente, o seu sobrenome é Quaresma que, na tradição da Igreja Católica, refere-se ao espaço de quarenta dias, começando na quarta-feira de cinzas e terminando no domingo de páscoa, período esse de penitência, de recolhimento espiritual, de abstinência de carne e de jejuns em memória dos quarenta dias passados por Cristo antes da sua paixão.
O início da quaresma se dá na quarta-feira de cinzas que é a quarta-feira imediata ao último dia de carnaval. Os ramos guardados do Domingo de Ramos são incinerados e com as cinzas traça o sacerdote uma cruz na testa dos fiéis, lembrando-lhes o começo do período de penitências, mormente depois dos muitos desatinos do carnaval. Ao traçar a cruz, diz o sacerdote: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem te reverteris: Lembra-se, homem, que és pó e em pó te hás de tornar”.
Policarpo viveu uma vida penitente, sem muitos amigos, sem pretensões ao poder, riqueza ou fama. Como diz o texto: “Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquiriu a candura e a pureza d’alma...”. É como se em seu interior estivesse entalhada uma cruz, uma missão que o levava à prática do não-natural, do não-comum. Quaresma viveu durante toda a sua vida numa “quaresma” esperando chegar à páscoa.
Na tradição Católica, a Páscoa é a festa da ressurreição de Cristo e, portanto, a sua maior festa. Policarpo, duplamente ironizado, não chegou até lá. Morreu violentamente deixando lembranças em poucos: “Ele tinha que ir para o posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de ressurreição”.
A violência, assim, apresenta-se ramificada nas mais diversas expressões e camadas sociais, tanto na esfera individual quanto na social.
E é assim que a escravidão, que embora seja terrível em si mesma, podia até gerar saudades face à espoliação do então negro livre. Quando Quaresma visita Maria Rita, uma negra consumida pela escravidão e pelo tempo, a voz narrativa fala: “Quaresma fez com a cabeça sinal afirmativo e a preta velha, talvez com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor recordar-se...”
Anastácio, o criado, já permanecia com Quaresma há trinta anos e dele não se desprendia porque bem conhecia o sofrimento que a sociedade lhe havia de impor. Beneficiado como um “agregado” de Policarpo, não era escravo nem empregado, porém não deixara de ser um preto velho com “...ternura passiva de animal doméstico...”, traço esse que o mundo lhe entalhou de maneira natural.
E da rapariga preta observada por Ricardo se diz: “Teve pena daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua cor”.
No âmbito militar, a burocracia era patente. As nomenclaturas eram concedidas esvaziadas de sentido prático, calcadas fundamentalmente no necessário estado de “protegido”. Em busca de projeção, os militares não mediam esforços.
O General Albernaz era um homem medíocre, bonachão, alienado: “Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro..., cuja maior dedicação era casar suas filhas e nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro”.
O Contra-Almirante Caldas “...nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo”. Inocêncio Bustamante bajulador e interesseiro “...não havia dia em que não fosse ao quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num, pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros”.
O espírito da guarda nacional está resumido nestas palavras: “É curiosa essa cousa das administrações militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos”.
As repartições públicas não trabalhavam de modo diferente. De Genelício se fala: “Não havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor, nenhuma vergonha.Enchia os chefes e os superiores de todo o incenso que podia. (...) Em quatro anos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para ser aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima. Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio”.
A mediocridade levava-os à violência em busca da autopreservação e do poder. E qualquer um que demonstrasse possuir capacidade de pensamento, de expressão, de valor humano, era atacado como um inimigo de guerra:
“- É bom pensar, sonhar consola, disse Ricardo.
Responde Quaresma: “- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismo entre os homens...”
O requerimento de Quaresma foi um tiro direto contra as mentes inertes.
Na verdade “...é como se se visse no portador da superioridade um traidor à mediocridade, ao anonimato papeleiro”.
E os motivos eram mesquinhos: “Não há só uma questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos(...). A brusca popularidade de Quaresma e seu sucesso e nomeada efêmera irritaram os seus colegas e superiores”.
O Dr. Rocha talvez seja uma boa figura do sistema: “...tinha na secretaria a fama de sábio, porque era bacharel em direito e não dizia cousa alguma”.
E, foi na deflagração da guerra que todos eles - e muitos outros - viram as condições propícias para a ascensão que tanto almejavam: “A cidade andava inçada de secretas, ‘familiares’ do Santo Ofício Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e recompensas.(...) Os funcionários disputavam-se em bajulação, em servilismo...”
Albernaz viu na revolta “...uma certa esperança na ação do Marechal. Estando em apuros financeiros, não lhe dando o bastante a sua reforma e a gratificação de organizador do arquivo do Largo do Moura, esperava obter uma outra comissão, que lhe permitisse mais folgadamente adquirir o enxoval de Lalá”. Bustamante “...imaginava organizar um batalhão patriótico... e naturalmente seria o seu comandante, com todas as vantagens do posto de coronel. Genelício ...esperava ser subdiretor”. O Dr. Armando Borges, “o marido de Olga e sábio sereno e dedicado quando estudante, colocava na revolta a realização de risonhos anelos”.
Somando-se a todos, os políticos não eram exceção. As lutas eleitorais tornavam-nos verdadeiros desumanos: “...o major ficou a pensar no interesse estranho que essa gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer cousa de vital e importante. (...) Não estava ali a terra boa para cultivar e criar? (...) Por que não se empregava o esforço que se punha naqueles barulhos de votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres, vidas - trabalho igual ao de Deus e dos artistas? (...) O sufrágio universal pareceu-lhe um flagelo”.
É importante ter em mente que, antes de significar “oração feita pelos vivos em benefício dos mortos”, mesmo na linguagem da Igreja Católica, o suffragium era o voto oral dado pelos leigos nas eleições do clero. Saindo da terminologia religiosa, significou o boletim com a votação nas eleições em Roma. Quaresma entendia que esse processo brutal de luta pelo poder, de conquista de votos, de provocar a “...desarmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fora da esfera...” dos políticos era um flagelo, uma violência!
E os civis? Não eram menos medíocres. A diferenciação classista, que era muito forte, bem evidencia isto. Coleoni, um dos discípulos “ao longe” de Quaresma, convivia contrariado com os modos de falsa nobreza, com os desdéns dissimulados, com as tagarelices de casamentos, de bailes, de festas e de passeios caros comuns à alta nobreza.
Cabe lembrar que Coleoni, embora procurasse entender e ajudar Quaresma (inclusive evitando sua demissão, transformando-a em aposentadoria), não tinha encontrado a libertação completa da escala de valores da sociedade que o envolvia. Não conseguia olhar Quaresma além da visão natural; bem diferente de Olga que via seu padrinho no interior através do seu “...olhar luminoso e perscrutador...”.
Quando o pai de Olga soube do requerimento de Policarpo pensou: “Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda tinha, mas daí quem sabe? Na última vez que o visitou ele não veio com aqueles modos estranhos?”
A separação classista era nítida pela própria maneira como as pessoas transitavam pelas ruas: “Há pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; há operário de tamancos; há peralvilho à última moda; há mulheres de chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa. Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no namoro epidêmico e no espiritismo endêmico; as casas de cômodos (quem as suporia lá!) constituem um deles bem inédito. Casas que mal dariam para uma pequena família, são divididas, subdivididas, e os minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável da cidade. Aí, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor londrino”.
A festa na casa do General Albernaz é mais uma oportunidade que temos para verificar o quanto a alta sociedade poderia ser cômica, e por que não, ridícula. Embora pretendessem transparecer evolução, se portavam como seres de conteúdo interior nulo: “Dona Maricota vestia seda malva e o seu busto curto parecia ainda mais abafado, mais socado, naquele tecido caro que parecia requerer corpos elegantes e flexíveis. (...) Lalá, a terceira filha do general, que já se ajeitava a moça, tinha muito pó-de-arroz, estava sempre a consertar o penteado e a sorrir para o Tenente Fontes. (...) Genelício... caminhava todo atrapalhado nos apertados sapatos de verniz.(...)a fila estava no general, metido num segundo uniforme dos grandes dias, que lhe ia mal como a farda de um guarda nacional endomingado; mas quem tinha um ar importante, marcial e navegado, ao mesmo tempo palaciano, era o Contra-Almirante Caldas. (...) As âncoras reluziam como metais de bordo em hora de revista e os seus favoritos, muito penteados, alargavam a sua face e pareciam desejar com ardor os grandes ventos do vasto oceano sem fim. (...) Lulu, o único filho do general, impava no seu uniforme do Colégio Militar, cheio de dourados e cabelos, tanto mais que passara de ano, graças aos empenhos do pai”.
Outro exemplo é o do marido de Olga que resistia em ir visitar Quaresma, porque afinal de contas “...não lhe parecia bem aquela intimidade com um sujeito sem título, sem posição brilhante e sem fortuna”.
Quaresma, no “Sossego”, assim reflete sobre a vida comum: “Como é que toda a gente queria ser empregado público, apodrecer numa banca, sofrer na sua independência e no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas, sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentar-se de maus alimentos...”.
O capítulo “O Bibelot” mostra-nos um pouco mais o tipo de sociedade que havia. O hospício, lugar onde todos estão nivelados, era propício a uma reflexão sobre si mesmo e sobre seus interesses, porém “os visitantes não se olhavam, pareciam que não queriam conhecer-se na rua”. A pobreza de espírito não lhes possibilitava ver a si mesmos como loucos considerados sãos, vivendo sob a lei da indiferença e da crueldade.
Estavam cauterizados a ponto de não verem que “a cidade é como um esqueleto, faltam-lhe as carnes...”, faltam-lhe a agitação, a vida, o dinamismo que provém do sangue que corre, do calor que movimenta. Eram apenas esqueletos, mortos. Até mesmo para os mais ricos, a vida consistia em apenas etiquetas e, portanto, era vazia, fria como as palmas que soaram direcionadas à filha de Lemos, que embora tenha cantado e tocado piano com perfeição, não escondia “...o mau gosto de uma moça bem-educada”.
Os valores sociais estavam invertidos a ponto de uma Síntese de Contabilidade Pública Científica (da qual dois terços era mera documentação de decretos e portarias), receber - baseado na beleza da expressão - elogios da imprensa e dos críticos, além de ser digna de um prêmio, vindo do Ministro, de dois contos.
O tratamento dado a algo tão fútil foi inteiramente contrário ao que foi dado ao Requerimento de Quaresma. E como se isso não bastasse, o pouco caso que Floriano fez do Memorial - rasgando um pedaço das primeiras páginas e escrevendo ao seu Ministro de Guerra -, nos revela uma completa má vontade de mudanças, e até mesmo de se refletir sobre a necessidade delas.
Diante disto, podemos imaginar o grande prestígio que teve o lançamento do artigo, em estilo clássico, sobre “Ferimentos por arma de fogo” que Armando estava “traduzindo”. As inversões de orações, os períodos picados por vírgulas, as substituições sinonímicas, sem dúvida faziam com que a obra começasse “...a causar admiração aos seus pares e ao público em geral”.
Excetuando-se Olga, Ricardo, Coleoni e alguns outros poucos sem expressividade, todos os demais estavam embrutecidos pela natureza irracional e pela inversão de valores, e por isso não poderiam ter agido de modo diferente quando Ricardo procurou neles ajuda para Quaresma. Como no julgamento de Cristo - onde todos os principais sacerdotes, fariseus, doutores da lei gritaram uníssono a Pilatos: crucifica-o! -, também quanto a Quaresma gritaram para Floriano: mata-o!
Na voz de um secretário ou ajudante-de-ordens: “- Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!”. Todos lavaram as mãos e entregaram-no ao algoz.
Podemos notar que a violência tem o seu lugar como um elemento diferenciador e caracterizador entre os homens.
Ora, tanto a loucura de Quaresma, quanto a decisão de se mudar para o “Sossego” ou a de ir lutar a favor de Floriano, foram resultantes das violências inerentes no indivíduo e na sociedade por ele sofridas. Cercado pela incompreensão total e pela pressão de homens vis, vai à loucura e ao desânimo: “A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar”.
A recuperação, porém, não o deixou como antes. Na verdade, o seu interior havia sofrido modificação: “Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente. (...) Quaresma saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. (...)Embora nunca tivesse sido alegre, a sua fisionomia apresentava mais desgosto que antes, muito abatimento moral...”.
Sendo um homem de grande poder de decisão, pensou que poderia expressar a riqueza brasileira por outra forma de vida. Não mais através da futilidade de um requerimento. E “então pensou que foram vãos aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida, era uma forte base agrícola, um culto pelo seu solo ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela tinha de preencher”.
Então foi assim que “...para levantar o ânimo que se recolheu àquela risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas”. Foi para o “Sossego” idealista do mesmo jeito: “Planejou a sua vida agrícola com a exatidão e meticulosidade que punha em todos os seus projetos. Encarou-a por todas as faces, pesou as vantagens e ônus; e muito contente ficou em vê-la monetariamente atraente, não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso mais uma demonstração das excelências do Brasil”.
Porém, foi agredido pela política suja, violenta e hipócrita, tendo inclusive sido denominado de “intruso” pelo jornal local. Os impostos cruéis, os preços injustos, o trabalho desvalorizado com lucro insignificante, encaminharam-no à reflexão de que estava nadando contra a maré.
E foi assim que, decidindo lutar por uma pátria mais justa, regida por leis humanas, agregou-se ao exército da República: “Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu folklore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas - tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil. Era preciso trabalho maiores, mais profundos; tornava-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esse óbices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador... Então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz”.
Embora o major acreditasse na realização de reformas profundas, a forte resistência que vinha sentindo durante a vida já o fazia incerto, mudado quanto a suas opiniões: “Pensava ...na reforma radical que ele (Floriano) ia levar ao organismo aniquilado da pátria, que o major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos”. Quaresma já não era o mesmo!
Alistando-se no exército, esperava poder levar ao ditador idéias renovadoras, e foi com seu espírito patriótico que redigiu um Memorial dirigido a Floriano: “- Trazia a Vossa Excelência até este memorial...”.
Um escrito recebido com desdém, com gesto de mau humor, com preguiça, com aborrecimento, com desfeita. Rasgando um pedaço do manuscrito, o Marechal escreveu ordens ao Ministro da Guerra.
Mas como Floriano era visto por seus seguidores? Os cadetes da Escola Militar viam nele a imagem do divino, a figura do ídolo que recebe adoração: “Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências e uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a República, em artigo de fé, em feitiço, em ídolo mexicano, em cujo altar todas as violências e crimes eram oblatas dignas e oferendas úteis para a sua satisfação e eternidade”.
Porém a verdadeira imagem do Marechal e da República já tinham passado pelos olhos de Quaresma que não a quis aceitar: “Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande ‘mosca’; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso - parecia não ter nervos. Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o temperamento. Essas cousas não vogam, disse ele de si para si”. Face ao seu entusiasmo do protagonista, considerava-o forte, sincero, desinteressado, enérgico, fino, supervidente, tenaz, conhecedor das necessidades do país, e possuidor de tibieza de ânimo. Embora Floriano fracamente acobertasse e não reprimia a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas, “Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens honestos e sinceros do tempo, foram tomados pelo entusiasmo contagioso que Floriano conseguira despertar”.
Essa concepção, por sua vez, não durou muito. Inicialmente, ele se defronta com o pouco caso em relação ao seu manuscrito. Depois, além de ser ouvido com “sinais do aborrecimento mais mortal”, é cognominado de visionário. E então, começa a sofrer pelas notícias de violências e crimes.
E é nesse contexto que Quaresma vai se revoltando, se modificando: “A moça viu entrar Quaresma com aquele sentimento estranho que o seu padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento, a passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente, simplesmente, como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de um divertimento qualquer em que a morte não estivesse presente. Tanto mais que o via apreensivo, deixando perceber numa frase e noutra o desânimo e desesperança. Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do ditador.Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer, desinteressado daquelas altas cousas de governo como se não o fosse! Era pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural? Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero, uma raiva de si mesmo..”..
Quando Quaresma foi à luta e viveu e presenciou a crueldade, o sofrimento, a ferocidade; percebeu que a violência, individualmente realizada e socialmente consentida, poderia levar, mesmo o homem mais idealista, à matança dos semelhantes para satisfazer homens inescrupulosos; entendeu que os desejos mesquinhos desembocavam no mar da agressão, da falta de amor, da falta de compaixão. Concluiu que a humanidade ainda permanecia pré-histórica, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, sempre a matar.
O fim da luta estava próximo e os militares estavam inconformados com isso em razão dos interesses materiais: “O almirante e Albernaz, ambos pelos mesmos motivos, observavam esse fim com tristeza. O primeiro via fugir o seu sonho de comandar uma esquadra e a conseqüente volta para o quadro; e o general sentia perder a sua comissão, cujos rendimentos faziam de forma tão notável melhor a situação da família.(...) Albernaz e Caldas ainda estiveram conversando um tempo e se despediram sempre amigos, cada um com o seu desgosto e a sua decepção”.
Os indivíduos continuavam a ser insensíveis, falsos, perversos. Não havia sentimento exceto o da satisfação própria. No velório do Senador Clarimundo, as vozes, em tom tão frio quanto o morto, diziam: “mea culpa, mea maxima culpa...”.
Todas os motivos pelos quais Policarpo lutou eram utopias num mundo que abertamente os rejeitava. Todo sofrimento, vergonha, sangue, foram inúteis. Quaresma despertara: “Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver. (...) Além do que, penso, que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido; e o sangue que derramei e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de um tolice política qualquer... Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade”.
Quaresma chega ao monte Calvário consciente de que seu patriotismo, desde aos 18 anos, não lhe trouxera nenhuma satisfação. Chegou desiludido por não ter sido compreendido; chegou cansado moral e intelectualmente: “O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era tão fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. (...) Era grande a sua desilusão”.
A recompensa por sua contribuição, o prêmio por ter investido toda a sua mocidade no patriotismo, o troféu por ter deixado os prazeres naturais em prol da busca de uma sociedade justa, foi a morte. Foi condenado à morte por ter sido sincero numa sociedade hipócrita.
Terminada a guerra, todos voltaram à vida fugaz cotidiana; Quaresma, porém, sofreu a dor da morte por viver uma filosofia de vida avançada demais para seres inertes no tempo.
Apenas dois discípulos foram deixados para dar continuidade à sua obra: Olga e Ricardo Coração dos Outros, os quais, em tentativa inútil, haviam procurado salvar Policarpo. Olga, ao caminhar ao encontro de Ricardo, olha as imagens ao seu redor. Muita coisa já se tinha mudado na fisionomia da terra, nos aspectos e no clima. E a sua esperança era a de que um dia talvez as modificações obtivessem uma abrangência ainda maior: “Esperemos mais....” Mais do que na aparência, transformações nos valores de cada um, pois interiormente - nada diferente do que presenciamos no mundo pós-moderno - as pessoas ainda continuavam ligadas às tribos selvagens que ali haviam habitado. Matariam o Cristo e os cristos quantas vezes aparecessem. A tecnologia avançara, porém o pensamento humano a respeito da vida e de si ainda permanecia o mesmo que há muitos séculos: “Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas; viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros”.

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