ADVERTÊNCIA

Este Blog contém algumas de minhas ideias, crenças e valores. Por não ter o objetivo de ser referência, não deve ser acolhido como "argumento de autoridade" e, muito menos, como verdade demonstrativa, cartesiana.

Aqui o leitor encontrará apenas reflexões e posições pessoais que poderão ser peneiradas e, por isso mesmo, rejeitadas ou aceitas, odiadas ou amadas. Assim, não espere encontrar fidelidade a alguma linha de pensamento ou a uma ideologia em particular. Permito-me a contradição, a incerteza, a hesitação, a descrença, a ironia; permito-me pensar.

Após as leituras, sei que uns concordarão, outros não, e haverá também os que encerrarão a visita levando uma pulga atrás da orelha. Não me importo. Se causar alguma reação, mesmo o desassossego, considero que atingi o meio. O fim fica por sua conta.

Abraços a todos e boa leitura.

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sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

A KÉNOSIS DE CRISTO

(Uma breve visão histórica, teológica e gramatical)


Moisés Olímpio Ferreira



O TEXTO BÍBLICO E UMA PROPOSTA DE TRADUÇÃO:

FILIPENSES 2. 1-7

Se pois (há) alguma súplica (ação de chamar para estar ao lado de) em Cristo,
se algum consolo de amor pela narração de fatos,
se alguma comunhão de espírito,
se alguma entranha (sentimento) e compaixões,
dai plenitude à minha alegria, para que a mesma coisa penseis,
tendo o mesmo amor, unidos de alma, pensando aquilo que é um;
nada segundo a intriga ou glória vazia, mas com humildade
considerando uns e outros superiores a vós mesmos;
não as coisas de si mesmos fiqueis observando, cada um, continuamente
mas também, cada um, as coisas de outros.
Isso pois seja pensado entre vós o que também (foi pensado) em Cristo Jesus;
o qual, sob a forma de Deus existindo continuamente, não de forma violenta
[1] conduziu-se para o continuar sendo de modo igual a Deus,
mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo,
tornando-se (vindo a ser) em semelhança de homens;
e tendo sido achado em aspecto como homem,
humilhou-se, tornando-se submisso até a morte,
morte de cruz.


O termo ekénose em Filipenses 2.7 tem como tradução a palavra “esvaziou”. A partir desse termo, uma doutrina, chamada kenótica, ensinou que Cristo, na encarnação, se desfez de sua divindade, se esvaziou de sua deidade.

Antes, porém, de tratarmos especificamente do sentido do termo no texto aos filipenses, iremos observar o uso da palavra em outros versículos bíblicos para identificar o seu significado usual.
O verbo foi poucas vezes empregado no Novo Testamento. Considerando Filipenses 2.7, são apenas, no total, cinco passagens que o contêm. A forma adjetiva aparece mais (16 vezes) e há ainda alguns substantivos compostos com o adjetivo que aparecem 3 vezes.
Nós nos prenderemos ao verbo, procurando identificar o seu sentido dentro do contexto neotestamentário.

Desenvolveremos este estudo em algumas etapas:

1) Verificação do sentido do verbo no uso neotestamentário;
2) Análise da forma verbal;
3) História do pensamento cristão sobre a encarnação;
4) Análise do texto, em seu contexto, para interpretar o sentido do esvaziamento.

I) VERIFICAÇÃO DO SENTIDO DO VERBO NO USO NEOTESTAMENTÁRIO
Romanos 4.14

Se pois os da lei são herdeiros, a fé está vazia...
1Coríntios 1.17 (falando sobre o sustentar-se do evangelho, diz:)

“...não, pois, enviou-me Cristo para batizar, mas para evangelizar; não em sabedoria de palavra a fim de que a cruz de Cristo não seja esvaziada (tomada em desprezo).

1 Coríntios 9.15

“...não escrevi estas coisas para que assim venha a ser comigo; melhor coisa, pois, a mim é morrer que o motivo de minha vaidade alguém esvazie...”
2 Coríntios 9.3

“Enviei os irmãos para que o nosso motivo de vaidade – aquele que é em favor de vós – não seja esvaziado nessa parte.”


CONCLUSÃO 1
Por tais passagens, percebemos que o sentido do verbo no Novo Testamento é “tornar-se vazio”, geralmente em condições metafóricas. Dessa forma, esvaziou a si mesmo traduz bem o sentido de heautòn ekénose em Filipenses 2.7.


II - ANÁLISE DA FORMA VERBAL

Um segundo elemento a ser levado em consideração é o verbo, identificado pela sua forma. Trata-se de um verbo no aoristo, na voz ativa, modo indicativo:


VOZ:


Por estar na voz ativa, o sujeito é quem pratica a ação nomeada pelo verbo. Assim, o sujeito de ekénose é o pronome relativo (o qual) que está retomando alguém da frase anterior, isto é, Jesus Cristo. Dessa forma, quem realizou a ação de esvaziamento foi o próprio Jesus Cristo.

ASPECTO:


Por estar no aspecto verbal aoristo, ekénose está indicando uma ação pontual realizada no passado. Uma ação pontual, sem progresso, sem continuidade, que não permaneceu em curso. Não foi uma ação contínua ou permanente, mas feita em um momento enquadrado no tempo. Houve um esvaziamento num dado momento. O verbo apenas traz à memória o ato em si.

Em que momento? O próprio texto responde:

mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo,
tornando-se em semelhança de homens;
O esvaziamento ocorreu durante o período em Jesus Cristo fez-se carne e habitou entre nós.

MODO:

O modo indicativo refere-se a uma afirmação (não a uma hipótese), uma asseveração de algo realizado em determinado tempo. É uma proposição enunciativa em que o fato é tido, pelo enunciador, como real.
CONCLUSÃO 2

O “esvaziamento” foi ação real (modo indicativo) do próprio Jesus Cristo (voz ativa), demarcada pelo período de sua encarnação.

III - HISTÓRIA DO PENSAMENTO CRISTÃO SOBRE A ENCARNAÇÃO
Há muita polêmica nesse ponto. A questão toda se encontra no âmago da doutrina da encarnação. A questão da encarnação já vem sendo discutida ao longo dos muitos séculos antes da Reforma. Muitos pensadores, seja para defender a humanidade de Cristo, seja para enfocar o Sua divindade, elaboraram teorias para explicar o Cristo-Homem.

a) NEGAVAM A HUMANIDADE
Docéticos: Jesus teria apenas forma humana, mas era totalmente divino;

Monarquianos modalistas: o único e mesmo Deus se manifestou em 3 modos diferentes: Pai, Filho e Espírito Santo. Ficaram conhecidos também como patripassionistas (no ocidente) e sabelianos (no oriente).


b) NEGAVAM A DEIDADE

Ebionitas: Jesus foi escolhido por causa de sua piedade legal e, por ocasião do batismo recebeu a filiação – adocionismo;

Adocionismo de Hermas: Jesus homem, por sua dignidade, foi escolhido pelo Logos e, na ressurreição, foi constituído Filho;

Monarquianos dinâmicos: defendiam que Jesus foi um homem deificado pelo Logos.


c) NEGAVAM A PLENA HUMANIDADE

Apolinarianismo: O Logos – Espírito - estaria no lugar da alma humana, de modo que Jesus não era plenamente homem. Se Cristo assim fosse, teria pecaminosidade.
d) NEGAVAM A PLENA DEIDADE

Arianismo: O Logos foi criado por Deus em determinado tempo da eternidade. Ele foi apenas o primeiro a ser criado, e, embora especialmente escolhido por Deus para a obra criadora que posteriormente haveria de ocorrer, o Logos não era Deus, mas um deus.

Poderíamos ainda falar sobre o nestorianismo cuja doutrina afirmava que Jesus era apenas um homem natural acompanhado pelo Logos. Nestório via uma natureza divina e outra humana (duas naturezas distintas) sem uma unidade perfeita. Jesus Cristo não era constituído de uma só pessoa, mas de duas. Havia duas naturezas e duas pessoas. O homem Jesus era apenas o portador de Deus (o Logos). Jesus era, portanto, apenas theóphoros, portador de Deus.

Eutíquio (que deu origem ao eutiquianismo), mantendo a unidade de Cristo, já acreditava que Jesus Cristo foi a somatória das duas naturezas resultando uma terceira, fundida, sem distinção. Para ele, houve a fusão das duas naturezas (humana e divina) em Cristo. Os monofisitas, daí, acreditavam em uma só pessoa com uma só natureza, isto é, uma natureza composta de outras duas não distintas.
A teoria kenótica foi desenvolvida para tentar responder à questão: em que condições Cristo tornou-se homem?
Para enfatizar dois pontos importantes da encarnação (a humanidade de Cristo e a grandeza de Sua humilhação), o pensamento kenótico acredita que o logos de Deus reduziu-se a ponto de perder sua divindade até às dimensões de um mero homem para depois aumentar em sabedoria e poder até recuperar novamente a natureza divina.
Algumas nuanças podem ser encontradas nessa teoria em diversos teólogos:
1) Tomásio disse que: apesar de reter atributos como poder, liberdade, santidade, verdade e amor, o Cristo despiu-se temporariamente de Seus atributos de onisciência, onipresença e onipotência, retomando-os na ressurreição.
2) Gess dizia que o logos, na encarnação, reduziu-se de modo absoluto às condições e aos limites da natureza humana de tal maneira que Sua consciência tornou-se pura consciência de uma alma humana.
3) Ebrard propunha uma vida dupla do Logos. Por um lado, reteve e exercia as suas perfeições divinas na vida trinitariana. Por outro lado, reduziu-se às dimensões de um homem, dono de uma mera consciência humana. Assim, o mesmo “eu” existiria, concomitantemente, na forma eterna e na forma temporal, mostrando-se infinita e finita por igual modo.
4) Martensen postula no Cristo (Logos), durante o tempo da humilhação, uma vida dupla procedente de dois centros sem comunicação entre si. Como Filho de Deus, Ele continuava em Suas funções cósmicas trinitarianas; na forma de Logos despotencializado, Ele nada sabia dessas funções, e só se reconhecia ser Deus no sentido em que tal conhecimento é possível às faculdades humanas.

CONCLUSÃO 3

A questão da encarnação desenvolveu-se ao longo da História nas mais diversas teorias. Ora enfocando a divindade de Cristo, ora, a sua humanidade. Como pudemos observar, a questão de como o Eterno Filho se fez carne na pessoa de Jesus Cristo foi amplamente discutida pela Igreja durante os séculos passados. Como entender o Logos em sua encarnação era um dos problemas encontrados. Uns acreditavam que ele uniu-se a uma alma e corpo humanos (duas pessoas e duas naturezas), outros acreditavam que ele não tinha humanidade alguma (era totalmente divino), outros acreditavam que ele não era Deus, mas um ser especial etc.


Uma nova teoria foi a Kenótica que apresentou Cristo como a manifestação do Logos esvaziada da divindade, isto é, negou-se a divindade de Jesus, ou a tornou totalmente distanciada do Jesus-Homem.

A isso Berkhof afirma: “Estas postulações são contrárias à imutabilidade de Deus e não concordam com passagens das Escrituras que dão atributos divinos ao Jesus histórico.”
IV - ANÁLISE DO TEXTO, EM SEU CONTEXTO, PARA INTERPRETAR O SENTIDO DO ESVAZIAMENTO
O tema proposto neste trabalho é: EM QUE SENTIDO ELE ESVAZIOU-SE NA ENCARNAÇÃO?
Lembremo-nos que, para ser um salvador perfeito, Cristo deveria ser plenamente Deus (porque só Deus poderia nos salvar) e plenamente homem (porque o pecador inteiro necessita ser renovado). Essa foi a posição que a Igreja tomou para responder às mais diversas teorias a respeito do Logos-Homem. Ora, tendo isso em mente, voltemos ao texto de Filipenses.
O contexto ensina-nos quanto à questão da humildade; incita-nos a buscar não só o bem de si mesmo, mas aquele que também é de outros. Tal exemplo é encontrado na pessoa de Cristo, “...o qual, sob a forma de Deus existindo continuamente, não de forma violenta conduziu-se para o continuar existindo de modo igual a Deus”. Atentemo-nos ao fato de que ele renunciou tal forma sem procurar mantê-la a todo custo, à força. Ele voluntariamente a despiu.
O exemplo supremo vem do próprio Senhor. Sua superioridade e soberania são incontestáveis, mas Ele, embora estando permanentemente na forma de Deus (a ênfase não está sobre o Seu poder, Seus atributos, Suas divindade, mas sobre a Sua forma, Seu exterior, Sua majestade, Sua glória), não agiu em defesa de sua condição eterna, “...mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e tendo sido achado em aspecto como homem, humilhou-se, tornando-se submisso até a morte, morte de cruz.”
Dessa maneira, o objeto implícito da ação realizada de esvaziar-se não é a divindade de Cristo, mas o seu estado de forma de Deus, para forma de servo, tornando-se em semelhança de homens.
O contexto trata do assunto da humilhação, sendo Cristo o modelo maior da Sua Igreja. A encarnação foi um ato de amor profundo da parte de Deus, porém, o Logos não deixou de ser verdadeiro Deus. Assim, a forma de servo não deprecia, em nada, a forma de Deus.



[1] Taylor sugere: a ser cobiçado e retido como a leoa segura a presa ou o salteador seu espólio.