ADVERTÊNCIA

Este Blog contém algumas de minhas ideias, crenças e valores. Por não ter o objetivo de ser referência, não deve ser acolhido como "argumento de autoridade" e, muito menos, como verdade demonstrativa, cartesiana.

Aqui o leitor encontrará apenas reflexões e posições pessoais que poderão ser peneiradas e, por isso mesmo, rejeitadas ou aceitas, odiadas ou amadas. Assim, não espere encontrar fidelidade a alguma linha de pensamento ou a uma ideologia em particular. Permito-me a contradição, a incerteza, a hesitação, a descrença, a ironia; permito-me pensar.

Após as leituras, sei que uns concordarão, outros não, e haverá também os que encerrarão a visita levando uma pulga atrás da orelha. Não me importo. Se causar alguma reação, mesmo o desassossego, considero que atingi o meio. O fim fica por sua conta.

Abraços a todos e boa leitura.

PS: Acesse também: http://moisesolim1.blogspot.com.br/

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A LIBERDADE NO FILHO DE DEUS

Moisés Olímpio Ferreira


Efésios 1.
3 Bendito o Deus e pai do senhor de nós Jesus Cristo, aquele que nos bendisse em toda bendição espiritual nas {regiões} celestiais, em Cristo,
4 como elegeu-nos para si nele antes da fundação do mundo para sermos, nós, santos e sem censura à vista dele em amor,
5 tendo-nos posto à parte de antemão para colocação de filho através de Jesus Cristo, para ele, segundo o bom parecer da sua vontade dele...


Paulo, indubitavelmente, foi o maior exegeta cristão do primeiro século. E em razão de sua missão gentílica, o tema “liberdade” percorreu seu evangelho. Para ele, Cristo era a liberdade no sentido mais amplo possível. Ele fala em liberdade da glória dos filhos de Deus (Rm 8.21), em liberdade no viver cotidiano (1Cor. 8.1-11 e 10.25-31), em liberdade espiritual pela presença do Espírito Santo (2 Cor. 3.17), em liberdade face aos ritos e tradições (Gl. 2). Na carta aos Gálatas (5.1), há uma expressão magnífica a esse respeito: pela liberdade, Cristo nos tornou livres.


Por que razão liberdade e Cristo estão associados? Que relação há entre os dois? É evidente que não temos a pretensão de esgotar o tema, mas sem a devida compreensão inicial do que propomos apresentar, todas as demais manifestações perderão o foco e serão indevidamente percebidas como grandezas absolutas: a parte entendida como todo.

Em sua carta aos Efésios, Paulo introduz a seguinte idéia: Deus “em Cristo” estabeleceu um Plano de Ação na era em que ainda não havia a noção de tempo, isto é, antes do tempo crônico existir. Ele diz (1.3-5):


3 Bendito o Deus e pai do senhor de nós Jesus Cristo, aquele que nos bendisse em toda bendição espiritual nas {regiões} celestiais, em Cristo,
4 como elegeu-nos para si nele antes da fundação do mundo para sermos, nós, santos e sem censura à vista dele em amor,
5 tendo-nos posto à parte de antemão para colocação de filho através de Jesus Cristo, para ele, segundo o bom parecer da sua vontade dele...

Com isso, o escritor trouxe à luz algumas ações divinas relativas à humanidade a partir da Sua própria posição atemporal: ...anterior à fundação do mundo (1.4) [1], na eternidade passada. É interessante observar que, não só os atos históricos divinos, mas também os acrônicos, têm o mesmo centro: o propósito eterno do Pai no Filho e suas diversas implicações.
Vejamos um pouco mais de perto essa relação Pai-Filho. O bendito revela-se por meio do Filho, ou seja, manifesta-se como o Deus e pai do senhor de nós Jesus Cristo, expressão essa que podemos encontrar em várias outras passagens. Como afirma Dunn (2003:56): Deus é o pressuposto fundamental da teologia de Paulo, o ponto de partida da sua teologização, o subtexto primário de toda a sua obra escrita (...). Via de regra nas cartas paulinas Deus é mencionado logo de início como fato primário de legitimação atrás da obra da vida de Paulo (2Coríntios 1.1; Efésios 1.1; Colossenses 1.1; 2Timóteo 1.1, Gálatas 1.1).

O que o apóstolo deixa claro é que o Deus criador, agora manifestado como Pai (em uma nova condição: relação de intimidade), estabeleceu o bom juízo da Sua vontade (1.5) - nas eras não-mensuráveis. Assim, a procura de ajustar Seus atos à teologia simplesmente histórica, é tentar restringi-Lo ao ato criador; é interpretá-Lo pela aparência, pela manifestação, o que é passível de tantas interpretações quanto o número de intérpretes existentes, ou quantos forem os pontos-de-partida convencionados (a inocência, a consciência, o reino humanos etc), pois fica sujeito ao olhar do ser individual aprisionado no tempo e na recepção pessoal. Mas Paulo alerta em Romanos 8.29 que, aos que Deus conheceu de antemão, pôs à parte de antemão para Si mesmo. O advérbio grego pró remete ao antes, ao momento pré-aparente e, entender essas afirmações pelo ponto de partida, como geralmente se faz, da criação – portanto, crônico - produz ajustes por coerção e implicações que desajustam o foco da revelação.
Em I Coríntios 2.7, Paulo escreve: ...falamos a sabedoria de Deus...a qual Deus separou de antemão frente ao tempo-sempre para a nossa glória. A ação de pôr à parte de antemão e tantas outras ações estão em função da vontade eterna do Pai; ela foi feita segundo Ele mesmo decretou para Seus próprios fins: ...separados de antemão segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade (1.11).

É preciso esclarecer que o texto não está falando da necessária Redenção[2], pois os sofrimentos de Cristo não foram – nem mesmo judicialmente - admitidos nos tempos eternos. João, em Apocalipse 13.8, diz que o Cordeiro foi morto, não na eternidade, não desde a eternidade, não antes da fundação do mundo, mas desde a fundação do mundo. No tempo-sempre de Deus, a marca do pecado não estava presente e a cruz histórica era desnecessária.

Esse bom juízo da Sua vontade no Filho permaneceu no Pai durante eras indetermináveis. Não se pode estabelecer quando foi que o Projeto foi pensado e quando ficou totalmente definido. Paulo usa a palavra mistério para tratar o que lhe foi revelado a respeito desse assunto: ...conforme a revelação do mistério ... que, agora, se tornou manifesto... (Rom. 16.25). Na carta aos Efésios, o apóstolo usa seis vezes essa palavra e sempre relacionando Deus, Cristo e o homem:

a) “...desvendando-nos o mistério da sua vontade...”(1.9),
b) “me foi dado conhecer o mistério conforme escrevi há pouco...” (3.3),
c) “...podeis compreender o meu discernimento no mistério de Cristo...” (3.4),
d) “...e manifestar qual seja a administração do mistério...” (3.9),
e) “Grande é este mistério...” (5.32);
f) “para, com intrepidez, fazer conhecido o mistério do evangelho...” (6.19).
O apóstolo acrescenta que esse mistério era um segredo de Deus oculto nEle mesmo desde o tempo da eternidade até a revelação de Cristo: ...desde os séculos, oculto em Deus...(Ef. 3.9); ...guardado em silêncio pelos tempos eternos...(Rom. 16.25); ...o qual em outras gerações, não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como, agora, foi revelado...(Ef. 3.5). Paulo assevera que a mensagem que ele pregava era a sabedoria de Deus que tinha estado ...oculta... (1Cor. 2.7).

A epístola paulina aos Colossenses (1.26-27) esclarece-nos mais:

...o mistério escondido das eras e das gerações foi, agora, foi manifestado aos seus santos, aos quais Deus quis dar a conhecer quanto à riqueza da glória desse mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, a esperança da glória... (Col. 1.26-27).

Também bem explicativas são as palavras de Paulo aos Colossenses (2.2): ...para que... eles tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus: Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos.


O Projeto, que até então estava bem guardado, é Cristo, não no sentido da encarnação (amplamente profetizado), mas quanto à extensão e conseqüência de sua obra. Tudo o que se deu e que se dará terão como núcleo a pessoa de Cristo, o Eleito Eterno do Pai; Ele é o realizador e o centralizador de tudo: ...Este é o meu Filho, o eleito... (Lucas 9.35). O termo usado para eleito é um hápax legómenon, forma verbal que indica eleição definitiva: Jesus foi, é e sempre será o Eleito de Deus, o Filho Eterno Eleito do Pai.

Essa eleição se dá sob o âmbito posicional e é por isso que Ele é o ...o primogênito de toda a criação... (Col. 1.15), ...o primogênito dentre os mortos... (Col. 1.18, Apc. 1.5), ...o primogênito entre muitos irmãos...(Rom. 8.29). Essa primogenitura refere-se aos Seus direitos, à Sua posição preeminente sobre tudo e sobre todos.
Isso é nítido na teologia paulina:
Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém (Rom. 11.36),
Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste (Col. 1.16,17),
Ele é o cabeça de todo principado e potestade (Col. 2.10).

Se apenas examinarmos os primeiros versículos da epístola aos Efésios já poderemos notar como o apóstolo eleva o Filho e O coloca acima de tudo e de todos (exceto do Pai[3]): Cristo é o Filho do Deus-Pai (1.3) que nos abençoou nEle (1.3); que nos escolheu nEle (1.4); que nos pôs à parte de antemão para a filiação por meio dEle (1.5); que nos concedeu a Sua graça nEle (1.6); em Cristo temos a Redenção (1.7); o Pai revelou-nos o mistério da Sua vontade em Seu Filho (1.9); o Pai planejou convergir todas as coisas nEle (1.10); fomos feitos herança nEle (1.11); a esperança está nEle (1.12); fomos selados com o Espírito Santo da promessa nEle (1.13). Essa posição foi-lhe atribuída pelo Pai, que há de convergir em Seu Filho todas as coisas. Quando a plenitude dos tempos[4] for alcançada, tudo o que há se curvará diante do Filho:

Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus é Senhor, para glória de Deus Pai (Filipenses 2.9-11).

Todos se curvarão diante do Ungido e se submeterão ao Seu senhorio, pois o Pai O constituiu ...herdeiro de todas as coisas... (Heb. 1.2).
Destacamos que os versículos 3, 5, 9 e 10 do capítulo 3 de Efésios apresentam a extensão do conhecimento a respeito do mistério. Foi revelado: 3: a Paulo; 5: aos apóstolos e profetas; 9: a todos os homens; 10: aos seres das regiões celestes.

Sendo assim, não poderia ser diferente: Cristo, a imagem entalhada de Deus (imagem gravada/entalhada da substância/ser dele - Hebreus 1.3), em estado gracioso (pleno de graça - João 1.14), apresentou e chamou a humanidade caída (afetada pelo pecado) a participar com liberdade da Vontade Eterna (não alterada em razão do pecado) de Deus.

É em razão disso que por várias vezes Paulo chama a atenção de seu leitor para a importância de “estar em Cristo”. Esse estado do cristão é que o faz encontrar-se com a “verdadeira liberdade” (João 8.36: Se o filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres).
Nesse sentido, a expressão metafórica em Cristo Jesus (Ef. 1.1 et alii) é muito comum no corpus paulinum e aponta para o que no passado fora mistério. Para o apóstolo, a vida cristã concentra-se em Cristo. Essa posição é condição necessária para a participação do Projeto de Deus: Romanos 6.11 – vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor; Romanos 8.1 – nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus; Romanos 12.5 – somos um só corpo em Cristo; 1Coríntios 1.2 – santificados em Cristo; 1Coríntios 15.18 – dormiram em Cristo; 19 – se esperamos em Cristo; 22 – todos serão vivificados em Cristo; 2Coríntios 5.17 – se alguém está em Cristo; Gálatas 2.17 – procuramos ser justificados em Cristo; Gálatas 3.26 – todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus; 28 – sois um em Cristo; entre outros.
Paulo anuncia a reconciliação: liberdade para achegar-se ao Pai, isto é, o canal entre o homem e o Deus está livre. O homem tem “em Cristo” (o centro do bom desejo do Pai) o caminho desobstruído, acessibilidade. Vejamos mais de perto o capítulo 3 de Efésios, versículos 8 a 12:

3.8 A mim, ao menor dentre todos os santos, foi dada esta graça: aos gentios anunciar as boas novas em relação à riqueza de Cristo que não se pode encontrar seguindo pistas
3.9 e iluminar [todos] qual a economia do mistério que esteve na condição de escondido desde as eras em Deus, naquele que construiu todas as coisas,
3.10 a fim de que seja feita conhecida, agora, aos governos e às autoridades nas {regiões} celestiais, através da igreja, a multidiversificada (multicolorida> multivariada) sabedoria do Deus,
3.11 de acordo com a colocação antes das eras a qual ele fez no Cristo Jesus, o Senhor de nós,
3.12 em quem temos a liberdade para falar (franqueza) e acesso em confiança, através da fé, à presença dele.

Foi dada a Paulo a graça de anunciar as riquezas de Cristo (3.8), de iluminar os homens quanto ao mistério que estava escondido (3.9) para que a sabedoria de Deus pudesse ser conhecida, por meio da Igreja, nas regiões celestiais (3.10). Isso está de acordo com o Projeto Eterno Cristocêntrico do Pai (3.11). A mediação da fé na revelação do Filho instaura o condição de liberdade para falar, o acesso confiante à presente do Pai – 3.12. Em Cristo, pela fé, os seres humanos podem falar livremente com Deus e achegar-se à presença dele.

Efésios 2.18, falando sobre a comunicabilidade homem/Deus, diz:

2.18 porque por meio dele temos o acesso - os dois em um só espírito - ao Pai.
A expressão em quem (3.12) mostra a pessoa em quem estamos tendo liberdade para falar. Mostra também em quem temos confiante acesso à presença de Deus. Por meio da fé indica enfaticamente o instrumento (>meio) através do qual ocorre a comunhão. Cristo é a pessoa-canal que permite o comparecimento livre do homem à presença de Deus. É por Ele que o ato verbal expresso por e;comen, estamos tendo, passa.

O verbo no indicativo temos é uma asseveração. Paulo dá como certo que todos (judeus e gentios, ambos - Efésios 2.18) em Cristo têm e continuam tendo acesso ao Pai. É a universalidade da igreja, do corpo de Cristo, do evangelho, de Deus no mundo.

Isso tudo me faz lembrar daquele magnífico convite de Hebreus 4.16:


Portanto, entremos no ato de achegar-se (acheguemo-nos), com liberdade, ao trono da graça, para que recebamos misericórdia e encontremos graça para ajuda em tempo oportuno.
A idéia desse texto indica ato em continuidade. O próprio subjuntivo - que marca a noção de eventualidade – também chama a atenção sobre o evento contínuo, assim que desencadeado o processo verbal: comecemos a entrar e continuemos no ato de achegar-se a. Em razão de Cristo – revelador da vontade eterna de Deus a toda a criação -, a aproximação segura, possível, livre entre Criador/criatura > Pai/filho foi estabelecida. Esse sentido já foi demonstrado em Efésios 2.18: porque por meio dele estamos tendo (ato contínuo, em progresso) o acesso... em que Cristo é o elo central.
Assim, grosso modo, todas as facetas do que denominamos liberdade cristã estão sujeitas à idéia central paulina de que a concretização do projeto eterno de Deus em Seu Filho – em realização em meio à queda, mas não influenciado por ela - concede aos que estão em Cristo o livre acesso ao trono do Pai e aos resultados dessa relação.

[1] A palavra kósmos não possui sentido único. No Novo Testamento, ela pode significar o mundo físico, criado e dividido geograficamente (Mc. 16.15), a raça humana (João 3:16), o sistema de organização decaído (João 14.17), as ocupações e responsabilidades da vida (1Cor. 7:33,34), épocas (2Pedro 2:5). Há também o uso raro significando adorno, enfeite (1Pedro 3.3). Os textos que utilizamos para a exposição deste trabalho possuem sentido ligado à criação.
[2] Apocalipse 17.8 diz que os nomes dos não salvos já não estavam escritos no Livro da Vida “...desde a fundação do mundo...” mostrando-nos que a questão da salvação foi judicialmente tratada no tempo cronológico (mesmo que Deus conhecesse a situação bem antes disso ocorrer). O texto indica que, apesar de toda a responsabilidade humana que possa estar presente no resgate dos indivíduos em seu tempo presente, Deus já de antemão os conhece; Ele sabe quem será salvo e quem não o será. A Providência divina diante do fato da queda já estava concluída “...desde a fundação do mundo” (Hebreus 4:3). Sob este ponto de vista, a obra da cruz é o mecanismo divino para que o homem retome ao Plano original; ela não pode ser entendida como o fim de tudo, mas, pelo contrário, como a capacitação para começarmos a ser o que Ele desejava.
[3] Cristo, submisso ao Pai, vivendo para agradá-Lo, “...também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos”(1Coríntios 15.28).
[4] Paulo emprega a expressão de duas maneiras. Em Efésios 1:10, a expressão a plenitude dos tempos oportunos refere-se à concretização final do propósito de Deus em Cristo; em Gálatas 4.4, a plenitude do tempo crônico refere-se à encarnação.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Adeus...

Adeus,
Não chores.
Basta-me a dor, por que vivi.
Em vez, canta a velha lira
de descanso maternal.

MF

terça-feira, 20 de novembro de 2007

A RAPOSA E OS BURROS

Moisés Olímpio Ferreira

Unidos pelo interesse, muitos burros reuniam-se freqüentemente para discutir sobre como dominar a floresta. Tentavam encontrar alguma resposta a esse anseio, mas a dificuldade era ainda maior porque pensar não conseguiam. Estavam todos azurrando ao mesmo tempo e apenas as vozes dos mais espertos se distinguiam:

- Vamos nos unir e determinar que a água da floresta seja somente nossa!

- Não, não... Vamos lutar contra todos os animais e vencê-los!

- Ouçam: Sejam mais corajosos! - disse um de grandes orelhas - Vamos fazer uma grande marcha e declarar que a floresta é nossa!

Nessa disputa de idéias asinais, surge a raposa e em tom impressionante fixa:

- Construamos uma torre bem alta no centro da floresta e de lá a comandemos! Tenhamos fé!

Os burros, ouvindo-a, mas não percebendo a sua intenção, aceitaram a sugestão. Começaram a trabalhar, dedicando o melhor de suas forças. Carregavam madeira durante a semana e, nos finais de semana, se consagravam ainda mais ao esforço. Com o firme propósito de conquistar mais rápido, envolviam os filhotes e as fêmeas no serviço.

A raposa, a quem levavam parte de seus alimentos como gratidão, passou a ser o líder do movimento de triunfo. As suas palavras eram animadoras e estimulavam o desejo de trabalhar:

- Não desanimem. Não haverá lugar para os covardes. As dificuldades de hoje servem para nos tornar melhores amanhã. Nada poderá nos deter. Fiquem firmes em suas posições. Avante!

Terminada a torre, fizeram a inauguração. Os orneios eram ouvidos de longe.

A raposa lá de cima, ao lado de sua família, fez seu discurso emocionada. Os burros, lá em baixo, choravam de alegria e de engano:

- A partir de hoje o reino dos burros começou. Eu sou uma simples raposa que sirvo a todos vocês com alegria e humildade. Esta torre é apenas a primeira entre as milhares que construiremos juntos. Em breve, com o esforço de todos, conquistaremos a floresta e teremos o melhor desta terra!

A partir de então, olhando sempre para o futuro, todos voltaram ao trabalho porque muito ainda havia para ser feito...

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

DISJUNÇÃO

Hoje brevemente revi meu passado. Lembrei de pessoas, muitas pessoas de tempos passados. Com elas, recordei-me das ações que fiz, das decisões que tomei, de algumas palavras que disse, de alguns pensamentos que tive. Depois de sentir uma dor grave de tristeza, conclui o que nas épocas nunca percebia: errei em conjunto; me desjungi antes da disjunção.

MF

quinta-feira, 31 de maio de 2007

SERVO: A MAIS PROFUNDA ENTREGA, O MAIS HONROSO LUGAR


Moisés Olímpio Ferreira

Certa vez, a mãe de Tiago e João pediu a Jesus um lugar especial para os seus dois filhos (Mateus 20.21). Fico imaginando aquela circunstância. Sem dúvida, os ouvintes se apertaram tanto quanto as pessoas do metrô da zona leste de São Paulo às 7h00 da manhã, curiosos, para ouvir o que Ele tinha a dizer a respeito.

Talvez um outro já tinha pensado em fazer o mesmo pedido para si mesmo e por isso se irritou por causa daquela mãe “estraga-prazeres”; outros que nunca tinham pensado nisso, possivelmente ficaram tentados a gritar “- eu também quero”, “ – eu também quero!” ; quem sabe Judas até pensou em negociar os melhores lugares ao lado do Mestre em troca de algumas moedas (afinal, é dando que se recebe, não é?).

Estava armada a confusão. Empurra-empurra, aperta-aperta, passa-passa. Naquela hora, valeria tudo: “- Além de discípulo, eu também sou sócio na mesma indústria de pescado deles!”, diria Pedro.

Quem sabe o melhor seria organizar tudo: “- Vou propor uma fila indiana. Assim, seria respeitada a ordem de chegada de cada um para reservar o lugar no Reino”, diria alguém preocupado com a aparência e o bem-estar do momento.

“- Duvido que isso dará certo”, afirmaria Tomé. “ – Acho que a ordem deve ser a alfabética”, proporia André. Tiago, certamente, protestaria veementemente contra essa sugestão ridícula.

Naquele momento, o “relógio” parou! Posso estar enganado, mas acho que ele parou mais do que com Josué. Silêncio total. Como diríamos hoje, dava para ouvir um lenço caindo.

Não sabemos se Tiago e João esperavam tal pedido de sua mãe; se não, fico imaginando a cara deles: vergonhosos, inquietos, sorrisos amarelos, cabeça baixa... Que gafe!

Não sei. Talvez se considerassem realmente dignos de um lugar especial e, por isso, estavam de acordo com a mamãe e, assim, os olhos estariam brilhantes e os lábios pendurariam sorrisos largos, pensando que, por pedirem primeiro, os melhores lugares estariam garantidos. Afinal de contas, eram filhos de Zebedeu, homem abastado, que tinha empregados e que era um exportador de peixes da Galiléia para Roma! Como o pai tinha dinheiro, mereciam um lugar especial no Reino!!

Sua mãe chamava-se Salomé (cf. Marcos 15:40). Ela era uma das que contemplaram a crucificação de Jesus. Se “a irmã dela” em João 19:25 for a Salomé de Marcos 15:40, João era primo de Jesus por parte de Maria. Talvez, então, Salomé quisesse usar seu parentesco de tia de Jesus para obter algum benefício. Afinal de contas, João e Tiago seriam seus primos!

Não sei exatamente o que pensaram, mas sei que arrumaram uma confusão danada. O texto diz que ...quando os dez ouviram isso, indignaram-se contra os dois irmãos (Mateus 20.24).

Seja como for, nenhuma pergunta chamou tanto a atenção dos discípulos como aquela. Quando se trata do “meu” quinhão, não há nada mais importante no mundo a ser tratado (diferente de hoje???). Todos estavam ao lado de Cristo desde o começo e não aceitariam essa situação sem discussão. Instalou-se o mal-estar.

Foi então que Jesus, aproveitando a situação, ensina:

Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos (Mateus 20.25-28).

Devo admitir que a resposta de Cristo causa estranhamento no mundo hodierno. É intrigante porque “servir” é algo ultrapassado nos discursos que hoje podemos ouvir na TV, no rádio ou ler em grande parte da atual literatura evangélica. Lemos e ouvimos muito sobre “determinação”, “recuperação dos bens perdidos”, “tomar posse”, “dar dinheiro para ter mais dinheiro”.

O cristão do século XXI está destinado à descaracterização de sua posição de servo passando a ser um novo senhor: senhor da criação, senhor de si mesmo e até senhor do Senhor. Mesmo com pouca pesquisa bíblica, é muito fácil detectar que “servir” a Deus não é exatamente o que hoje somos ensinados a viver.

O que me preocupa no cristão moderno é a sua cobiça de poder, é a sua fome de títulos, é a sua ambição pelo triunfo financeiro. Contaminado pela corrida mercadológica mundana, o cristão vive para realizações e sucessos que exigem dele tanto sacrifício como qualquer outro tipo de devoção, tornando-o escravo de seus desejos e dos ídolos da sua sociedade religiosa.

Há vários líderes esdrúxulos, fora do padrão bíblico. E são esses que se tornaram modelos para a igreja moderna; a multidão cegamente os adora!! Por terem contas bancárias bem recheadas, os seus seguidores acreditam que são espirituais. Em razão dessa falsa associação, muitos são levados a tê-los como padrão de verdade.

É preciso nos lembrar do conselho de Paulo a Timóteo. O apóstolo ensina-o que a busca do sucesso, da prosperidade, das riquezas não são sinais de vida íntima com Deus:

Porque nada trouxemos para este mundo, e manifesto é que nada podemos levar dele.Tendo, porém, sustento, e com que nos cobrirmos, estejamos com isso contentes. Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína (I Timóteo 6.7-8).

A orientação que a liderança da igreja tem tomado para o negócio lucrativo religioso (e para a ostentação de posições) tem transformado homens - que no passado foram servos da Cruz - em seres injustos, insensíveis e desumanos. Muitos são ludibriados pela grandiloqüência de suas próprias palavras, pelos aplausos da platéia, por suas obras faraônicas e até por sua cultura! Como resultado, acabam tendo suas consciências mortalmente afetadas, de modo que a Palavra de Deus não mais surte efeito. Acreditam em suas próprias ilusões e por isso as ensinam como verdades absolutas.

As Escrituras nos orientam em direção oposta a quase tudo que assistimos pela televisão (e a muito do que ouvimos em muitos púlpitos!). As Escrituras sempre serão o farol dos navegantes do imundo rio Mundo. Paulo alerta Timóteo quanto ao fato de que há homens que possuem mentes cauterizadas (insensíveis à verdade), que falam mentiras e procuram enganar os que estão no verdadeiro caminho da fé.

Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência (1Timoteo 4:1 e 2).

Nessas circunstâncias, o melhor conselho é: afasta-te dos tais! (Romanos 16.17). Não sejamos influenciados pelas manobras que eles utilizam torcendo as Escrituras a seu bel-prazer! Fujamos de sua manipulação!

Jesus chamou-nos de servos e os apóstolos não se envergonharam dessa posição. Todos eles reconheciam e ensinavam que servo é a condição de todo salvo em Cristo Jesus. Eles conheciam esse papel e o assumiam com singeleza de coração. Interessante é notar que o mesmo termo empregado para “servos do pecado” também é usado para “servos de justiça” (Rm. 6.16-18), de modo que ser doulos (escravo) de Deus implica submissão. Antes, éramos escravos do pecado vivendo na servidão da iniqüidade e fazendo suas vontades; agora, somos servos de Deus vivendo a liberdade da justiça em oposição à glória humana.

Aqueles que estão em Cristo vivem na liberdade de Deus, mas gozam-na por meio de Cristo, isto é, desfrutam refletidamente da liberdade que Cristo dá de Si, por Si e em Si mesmo. Assim, ao servo de Deus cabe a total dependência dEle.

Nesse conceito, a mensagem da Cruz é a de total entrega: E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim (Mateus 10.38). Que abandonada mensagem! Por não poderem rasgá-las de suas Bíblias, enterraram-na em seus discursos. Ao servo de Cristo está dado o papel da humildade, da pureza, da morte do velho homem, da Cruz: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me (Mateus 16. 2).

Na cruz, está a morte, a vergonha, a humilhação, o escândalo que firmam o nosso posicionamento contra o mundo e ratifica a novidade de vida que há no verdadeiro servo de Cristo. Cristo tomou a cruz histórica para capacitar-nos a tomar a nossa! Não a cruz de salvação, não a cruz para sermos dignos de salvação (jamais poderíamos sê-lo), mas a cruz do andar de modo digno do Cristo que nos salvou.

A profunda entrega nos protege das lisonjas humanas, dos interesseiros “tapinhas nas costas”, dos elogios perniciosos, das posições e dos projetos que engordam o “eu”, dos objetivos puramente materialistas, dos propósitos de conquistas para si mesmo ou para seu império pessoal, das esquizofrenias, das megalomanias que podem infiltrar-se em nosso interior e nos desviar da função cristã.
O autêntico servo deve saber que será perseguido quando toma a sua cruz. Não deve esquecer que será envergonhado por carregá-la; deve ter em mente que sofrerá danos por causa do autêntico evangelho. Entretanto, sabe que não foi chamado para ser um sucesso, mas para ser servo do Deus vivo com todas as implicações que disso advêm.

Sob os critérios religiosos atuais seria muito difícil nomear como ministros de sucesso aqueles que experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões... que foram apedrejados, serrados, tentados, mortos a fio de espada; que andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados (homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos e montes, e pelas covas e cavernas da terra (Hebreus 11.36-40), exceto quando erroneamente associam a devida prisão por crimes cometidos (como lavagem de dinheiro ou escondê-lo dentro da Bíblia, que em nada é mais santo do aquele que foi escondido na cueca) com perseguição injusta.

As regras do Reino de Deus são inversas às do nosso mundo. Nele, o maior serve o menor, o senhor lava os pés dos servos, o ofendido busca e oferece reconciliação, o amigo morre pelo inimigo, o bom perdoa o mau, o sacrifício é inferior ao amor, a ofensa é retribuída com perdão, o ódio é pago com amor, vale o que há no coração e não o que há na aparência. Assim, o Reino de Deus será composto por servos e não por senhores, todos operando para o bem comum. O mais honroso lugar no Reino é o de servo. Nós, do Filho Eterno; o Filho Eterno, de Seu Pai.

Jesus nos lembra: Não é o discípulo mais do que o mestre, nem o servo mais do que o seu senhor (Mateus 10.24). A resposta ao estúpido pedido daquela mãe foi: quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem...(Mateus 20.26).

Se quisermos nos parecer com Jesus, sigamos o exemplo de Cristo:

...existindo continuamente sob a forma de Deus, não de forma violenta conduziu-se para continuar sendo de modo igual a Deus, mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e tendo sido achado em aspecto como homem, humilhou-se, tornando-se submisso até a morte, morte de cruz (Filipenses 2.5-8).

Cristo abriu mão de sua glória, esvaziou-se dela, não defendeu Seus direitos reais com unhas e dentes, mas, fazendo-se homem, mostrou-se servo do Pai morrendo a morte humilhante de cruz: Eis aqui o meu servo, a quem sustenho, o meu eleito, em quem se apraz a minha alma; pus o meu espírito sobre ele; ele trará justiça aos gentios (Isaías 42:1-2).

Ser servo de Deus não é acumular conquistas e riquezas, não é manejar uma política fisiológica, não é ser um dono de grandes empresas, não é pertencer às altas posições eclesiásticas, não é fazer pactos, laços, alianças não transparentes com pretensões cristãs.

O servo de Deus entrega-se a Deus e permanece próximo do humano, do pecador, do pequeno, do simples, do necessitado para transmitir-lhe a Graça do Pai. Sua preocupação não é lançar luz sobre si mesmo, mas é apontar para seu Senhor. Ele não está interessado em ter sua foto divulgada em jornais, revistas ou TV porque reconhece que convém que ele diminua e seu Senhor cresça.

Cristo ...se entregou a si mesmo... (Gal. 2.20; Efésios 5.2 e 5.25) e foi pela sua total entrega que Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o SENHOR, para glória de Deus Pai ( Filipenses 2. 7-9).

A canção do servo deve ser: Servi ao SENHOR com alegria... (Salmo 100.2), servi ao SENHOR com temor, e alegrai-vos com tremor (Salmo 2.11), ...servi ao SENHOR com todo o vosso coração (1Samuel 12.10) porque ...quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos somente o que devíamos fazer ( Lucas 17.10).

quinta-feira, 24 de maio de 2007

AVIVAMENTO EM HABACUQUE

AVIVAMENTO EM HABACUQUE

Moisés Olímpio Ferreira

Tenho ouvido, ó SENHOR, as tuas declarações e me sinto alarmado; aviva a tua obra, ó SENHOR, no decorrer dos anos, e, no decurso dos anos, faze-a conhecida; na tua ira, lembra-te da misericórdia (Habacuque 3.2).


Sobre Habacuque há poucas informações disponíveis. A própria introdução do livro não nos fornece pistas de sua cidade natal, de sua tribo ou de sua família. Entretanto, não podemos nos iludir: essa condição de apagamento histórico não indica distanciamento ou indiferença do profeta em relação ao seu povo. Pelo contrário, o homem Habacuque encontra-se inserido nas dificuldades e problemas inerentes à sua nação, em seu tempo.

Logo na abertura do livro, ele pede o final das injustiças[1]. Ele se mostra impaciente diante da violência, dos crimes, das injustiças, das leis que haviam sido deturpadas, dos direitos que haviam sido violados nas disputas e litígios em Judá. Ele viveu durante um dos períodos mais críticos de sua nação. Após a deterioração das reformas de Josias, Judá passou a conviver com medidas de tratamento violento de seus cidadãos, com critérios opressores contra o necessitado, e com a ruína do sistema legal.

Por que me mostras a iniqüidade e me fazes ver a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há contendas, e o litígio se suscita. Por esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida (1.3,4).

Ele clama a Deus ao vivenciar essa situação trágica. Ele vive e reage. Ele “vê” – v.3: por que me mostras... - (certamente não era simplesmente ver, mas sentir na pele) as opressões e, de certa forma, em oração tensa, requer de Deus uma ação urgente. Diante a dura realidade, ele não entendia como é que Deus podia permanecer impassível. Para ele, Deus parecia mostra-se desinteressado: “clamo e não me escutas”:

Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás? (1.2).

Esse grito de revolta interior encontramos também em outras situações. Pertence àqueles que estão boquiabertos frente às desgraças humanas:

Jó 19.7: Eis que clamo: violência! Mas não sou ouvido; grito: socorro! Porém não há justiça.
Jeremias 20.8: Porque, sempre que falo, tenho de gritar e clamar: Violência e destruição! Porque a palavra do SENHOR se me tornou um opróbrio e ludíbrio todo o dia.

Como resposta, Deus convida Habacuque a “olhar”, a “ver” o que está acontecendo nas terras exteriores, nas outras nações, no panorama internacional: Vede entre as nações, olhai... (1.5). Vendo, ele deveria compreender o que Deus já estava fazendo. Por meio do Império Babilônico a justiça requerida seria realizada:

6) Pois eis que suscito os caldeus, nação amarga e impetuosa, que marcham pela largura da terra, para apoderar-se de moradas que não são suas. 7) Eles são pavorosos e terríveis, e criam eles mesmos o seu direito e a sua dignidade. 8) Os seus cavalos são mais ligeiros do que os leopardos, mais ferozes do que os lobos ao anoitecer são os seus cavaleiros que se espalham por toda parte; sim, os seus cavaleiros chegam de longe, voam como águia que se precipita a devorar. 9) Eles todos vêm para fazer violência; o seu rosto suspira por seguir avante; eles reúnem os cativos como areia. 10) Eles escarnecem dos reis; os príncipes são objeto do seu riso; riem-se de todas as fortalezas, porque, amontoando terra, as tomam. 11)Então, passam como passa o vento e seguem; fazem-se culpados estes cujo poder é o seu deus. (1.6-11).
Mas tal resposta não o satisfaz, pois implica a destruição de Jerusalém – o que efetivamente ocorreu em 587 a.C. pelo caldeus. Estes se apoderavam dos povos com violência e destruição[2] -. Ele protesta, queixa-se novamente a Deus, pois tal “solução” divina apresentada criou nele um problema de ordem ainda maior, de natureza moral. Então, interroga Deus, afirma que embora Ele conheça os acontecimentos desastrosos futuros, parece fingir não vê-los. Se vê, por que se cala, então? Para o profeta, o silêncio divino depunha contra Ele:

13) Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal e a opressão não podes contemplar; por que, pois, toleras os que procedem perfidamente e te calas quando o perverso devora aquele que é mais justo do que ele? 14) Por que fazes os homens como os peixes do mar, como os répteis, que não têm quem os governe? (1.13-14)

Que tipo de povo era esse para que exercesse juízo? Poderia executá-lo? Como Deus pode usar como instrumento de juízo um povo mais cruel e desumano do que aquele que está sendo punido? (Baker, 2006:325). Para o profeta, isso não poderia acontecer. Eram violentos, cruéis, cultuadores de seu próprio poder:

15) A todos levanta o inimigo com o anzol, pesca-os de arrastão e os ajunta na sua rede varredoura; por isso, ele se alegra e se regozija. 16) Por isso, oferece sacrifício à sua rede e queima incenso à sua varredoura; porque por elas enriqueceu a sua porção, e tem gordura a sua comida. 17) Acaso, continuará, por isso, esvaziando a sua rede e matando sem piedade os povos? (1.15-17).

O profeta se perguntava: é possível que o menos justo possa aplicar justiça ao mais justo? Nessa “pescaria” babilônica, Habacuque questionava-se: é possível que semelhante expedição de pescaria tenha sido organizada pelo Deus santo?[3]. A invasão babilônica lhe era intolerável: a “cura” de uma invasão babilônica é pior do que a “enfermidade” do pecado de Judá (Becker, 2006:328). Por isso, ele se põe atento para ouvir o que Deus tem a dizer a respeito de suas queixas:

Pôr-me-ei na minha torre de vigia, colocar-me-ei sobre a fortaleza e vigiarei para ver o que Deus me dirá e que resposta eu terei à minha queixa (2.1).

Deus, então, lhe responde. Manda registrar o que dirá, pois deveria ser lida por outras pessoas - sobre os quais se cumpriria o mesmo princípio - daquele e de outro tempo (2.2-3). O juízo haveria de chegar, o momento da vingança contra a Babilônia estava por vir[4]:

O SENHOR me respondeu e disse: Escreve a visão, grava-a sobre tábuas, para que a possa ler até quem passa correndo. Porque a visão ainda está para cumprir-se no tempo determinado, mas se apressa para o fim e não falhará; se tardar, espera-o, porque, certamente, virá, não tardará.
Em seu cântico de agradecimento a Deus que está no capítulo 3, o profeta - tendo em vista as obras que Deus já havia feito (da fama de juiz sobre o violento, das declarações de destruição que fez por causa da arrogância, da injustiça, da luxúria, etc.) - primeiramente “se sente alarmado” - 3.2 -, isto é, ele reage com sentimento de espanto diante do poder julgador de Deus ao qual também deve submeter-se. Babilônia seria julgada, mas Judá não ficaria ileso. O julgamento próximo de seu país, e que o atingiria, já tinha sido prenunciado em 1.5:

Vede entre as nações, olhai, maravilhai-vos e desvanecei, porque realizo, em vossos dias, obra tal, que vós não crereis, quando vos for contada. (grifos nossos)

Em 1.2 o profeta pergunta: até quando? Em 1.5, Deus responde: realizo em vossos dias... A ação julgadora de Deus se daria no momento histórico em que o profeta vivia. A visão da injustiça seria trocada pela contemplação do ato divino ajuizador.

O que Deus realizaria? O texto diz-nos: obra tal. E a que obra se refere? À do juízo por meio do povo babilônico (1.6-11). E o caráter dessa punição está baseado na excepcionalidade, na inacreditabilidade, no inarrável: vós não crereis, quando vos for contada. Isso justifica que em 3.2 o profeta se mostre apavorado porque ele “ouve” as declarações de Deus e elas, na concretização histórica – no âmbito do “ver” e do “sentir” -, são aterrorizantes.

Entretanto, como Schökel & Diaz (2002:1140) afirmam: Em meio a uma situação trágica, sinal da cólera divina, o profeta ouve e contempla visão terrível e libertadora (grifo nosso).

Daí resulta a sua segunda reação: Habacuque pede a atualização, a “presentificação” da ação poderosa de Deus. Assim como Ele agiu no passado, Habacuque roga que assim se repita: aviva, dê vida, realiza, manifesta as Suas ações! Os atos passados devem ser “avivados”... de modo que a obra de Deus, junto com ele próprio, possa uma vez mais tornar-se conhecida (cf. 2.14). Essa obra de Iavé na história está descrita nos versículos de 3 a 15, sob aspecto de poder e julgamento (Baker, 2006:352).

Mas o que é que ele está pedindo com isso? De forma direta temos: Castigue os judeus pecadores, puna-os! Aplique a justiça sobre o seu povo para que a injustiça cesse entre nós. Em um sentido mais específico, como afirmam Pheiffer & Harrison[5], o verbo aviva pode ser entendido como: ponha em operação as Suas obras, isto é, o Seu programa exposto, para que se torne uma ação viva. É isso que para Habacuque significa: aviva, Senhor, a tua obra.
Tais ações devem ser vistas, observadas, vivenciadas pelas gerações no decorrer dos anos. Ele roga para que a obra tal não seja jamais esquecida: no decurso dos anos, faze-a conhecida. Embora as implicações dessa oração não estejam revestidas de bênção imediata (mas de sofrimento pela correção: ele contempla uma visão terrível e teme), o profeta reconhece que a deterioração da verdade, a deturpação dos valores, a violação dos direitos que geram violência, crime, roubo e a permanente impunidade face às injustiças devem ser punidos.

AVIVA, SENHOR, A TUA OBRA! E a tua obra no texto é a manifestação do Deus-Juiz que, tanto quanto o profeta, requer Justiça. Avivá-la é aplicá-la, é executá-la, é trazê-la à realização histórica. O profeta que gritava, que não suportava a iniqüidade, que não era mais capaz de ver a opressão, o afrouxamento da lei, a perversão entre seu povo era a representação humana da voz de Deus em seu estado de ira. Os anseios do profeta eram os de Deus.

Mas Deus destruirá seu povo? Habacuque roga: na tua ira, lembra-te da misericórdia (3.2). O Senhor é misericordioso para com aquele que tem fé (e observemos que ter fé nesse contexto significa viver separado das perversidades apontadas por Habacuque; a fé está concentrada em resultados factuais da vida prática): o justo viverá pela fé (2.4). Não se trata de fé no campo da abstração, de um pensamento metafísico, mas no da crença manifestada por meio de atitudes concretas.

A Babilônia chegará aos portões de Jerusalém como forma de juízo divino, mas os medo-persas também chegarão aos portões da Babilônia para julgá-la. Quem sobreviverá? O justo em sua fé. O profeta ouviu a resposta de Deus e satisfez-se.

O salmo de Habacuque (capítulo 3) exalta Deus por sua grandeza e mostra-O como o grande Deus-Guerreiro que saiu de seu lugar para salvar a parte de Seu povo que injustamente estava agredida, humilhada, indefesa. Apesar do iminente juízo, o profeta exclama atitude de fé quanto ao futuro:

Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação. O SENHOR Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente (3.17-19).

A partir desse contexto, podemos pensar um pouco sobre “avivamento” no mundo moderno. O profeta, insatisfeito com as condições morais em que vivia - reflexos das condições espirituais do povo -, roga por justiça que se dá por meio do “avivamento”. Na verdade, só se clama por um aquele que não se conformou com o sistema vigente. Paulo já alertara sobre isso:

Romanos 12.2: E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
O verbo usado por Paulo, traduzido como conformeis, é syskhematídzesthe, composto por syn (com) mais o verbo skhematídzo (eu assumo uma maneira de ser). Assim, o sentido da oração inteira é: não entreis no ato de, com a presente era, assumir uma maneira de ser. Somente os que assim decidem fazer é que se tornam insatisfeitos e rogam avivamento.

Mas não se trata de uma emoção, de um “movimento” ou de um “mover” no sentido atualmente empregado no meio evangélico; nada tem a ver com alguma manifestação de experiência mística particular; nada tem a ver com movimentação religiosa de rua, de agitação, de carros alegóricos ou trios elétricos, com o fim de encobrir e justificar criminosos de púlpito ou obter votos para político corrupto; não está relacionado à compra de prédios para culto religioso, a grandes construções de torres para promoção denominacional; à compra de grandes terrenos para benefício do senhor-Eu; não se refere à mercantilização do evangelho, ou à prática ilícita de negociatas com o divino para enriquecimento; não tem a ver com a quantidade de programas “evangélicos” (por sinal, horríveis) na TV, especialistas em venda de produtos e em milagres falsificados que só enganam os incautos.

Somos constantemente convidados a fazer parte de alguma recolha de dinheiro, e os títulos dados são bem variados: mantenedor, associado, patrocinador, contribuinte, parceiro, devoto, sócio-contribuinte, Gideão (tenho que admitir: são criativos quando o assunto é dinheiro). Um deles oferece, em troca da oferta, a colocação do nome do contribuinte em um “Livro de Ouro” que, como a tocha olímpica, passará por diversas igrejas deles para receber oração. Atingindo a ganância humana, somos convidados a fazer parte de campanhas de prosperidade como a de “Abraão”, a de “Isaque”, a de “Jacó”, a de “Elias” que me parecem mais campanhas em homenagem a “Judas, o Iscariotes”.

“Avivamento” nada tem a ver com os vales de sal, com as campanhas de descarrego. Nada tem a ver com a atual e ridícula movimentação chamada “apostólica” em que o líder é adorado e sua autoridade é papal. Em uma conferência, vi um deles com brochas encharcadas, jogando água no povo para “abençoá-lo”; no ápice da loucura, despejava água na cabeça do povo com baldes. Ridículo! Os discursos são todos construídos em “chavões” mortos, em forma de rezarias sem rosário, judaizantes e farisaicos. Em 2006, na 4a. Conferência Apostólica vi e ouvi pela TV o cântico: Espírito, Espírito, Espírito Santo de Deus... e o apóstolo lusitano completava: derrama sua unção financeira! Para eles, é isso que é avivamento.

Essas formas chamadas por alguns de “avivamento” passam e, no decurso do tempo, caem no esquecimento ou na religiosidade morta. Elas apenas são expressões de promoção das paixões humanas.

Habacuque fala de algo duradouro, permanentemente atualizado: aviva a tua obra, ó SENHOR, no decorrer dos anos, e, no decurso dos anos, faze-a conhecida.

O que disso se pode afirmar é que alcançar e implantar em estado completo (verdadeiro avivamento) a boa, agradável e perfeita vontade de Deus deve ser o alvo primeiro do cristão. Se isso, entretanto, na esfera da responsabilidade humana, é cair no projeto de natureza irrealizável, cabe-nos, então, buscar (rogar, clamar, insistir com Deus) a manutenção permanentemente viva da ação poderosa ajuizadora de Deus no mundo. A insatisfação causada pelos pecados da própria Igreja e da sociedade leva o verdadeiro cristão a desejar ardentemente a manifestação constante da justiça de Deus.

Desse modo, se pudermos falar em avivalista, interessa-nos não o quanto ele domina a linguagem, ou o quanto o seu discurso tem poder persuasivo ou psicologicamente afetador, fazendo seu auditório pular, cair, chorar, rir, sapatear, voar, desmaiar, dar “chiliques” (que são manifestações passageiras e fugazes e que, portanto, não satisfazem o coração daquele que busca o avivamento que Habacuque pediu) ou vendendo “Bíblias de vitória espiritual e de bênção financeira”, que não passa de marketing capitalista de pregadores comprometidos com seus próprios umbigos!

Na verdade, interessa-nos no avivalista o quanto ele instrumentaliza a concretização do programa de Deus no mundo, do reino de Deus baseado na Justiça, Paz e Alegria no Espírito Santo (Romanos 14.17). O cristão, juntando sua voz à do profeta, deve rogar a realização da obra divina que impõe juízo irrestrito contra o pecado (inclusive ao da Igreja) e, ao mesmo tempo, salvação gloriosa aos que têm fé.

Deus tenha piedade de nós!
[1] Schökel e Diaz (2002:1123) alertam: O livro de Habacuc é um dos mais discutidos do AT. O problema básico é o seguinte: em diversos momentos (1,4.13; 2,4) ele contrapõe a atitude e o destino do inocente e do culpado. Mas,quem é o inocente e quem é o culpado? Trata-se de conflito interno entre os diversos grupos judaítas, ou de conflito entre Judá e alguma ou algumas potências estrangeiras? As opiniões são muito variadas. Na p. 1124, eles admitem a seguinte posição: Para a maioria dos críticos, o livro fala da opressão de Judá por país estrangeiro, embora não se saiba de que povo está se falando. Uma linha diferente de interpretação que sintetiza as duas anteriores é a que adotamos neste trabalho.
[2] De acordo com BAKER, David W. Habacuque. In: BAKER, David W. et alii. Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias. Tradução de Robinson Malkomes et alii. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 324: a invasão prevista por Habacuque pode ter-se dado em qualquer momento antes de 587 a.C., quando Jerusalém foi finalmente destruída pelos babilônios. Essas profecias foram provavelmente apresentadas algum tempo antes. Um período possível seria o do reinado de Jeoaquim (609-598 a.C.), quando a presença babilônica fazia-se sentir cada vez mais. Em 598 a.C., os babilônios marcharam contra Judá, e então Jeoaquim morreu, provavelmente assassinado (cf. Jr 11.18-19; 36.30). O conhecimento pessoal da brutalidade babilônica (cf. 1.12-17) ajusta-se bem a esse período.
[3] SCHÖKEL, L. Alonso & DIAZ, J.L. Sicre. Profetas II. Tradução de Pe. Anacleto Alvarez, 2a. edição, São Paulo: Paulus, 2002, p. 1133.
[4] O juízo sobre a Babilônia ocorreu muitos anos depois em batalha contra as forças medo-persas que estavam sob o comando de Ciro (539 a.C.).
[5] PFEIFERR, Charles F. & HARRISON, Everett F. Comentário Bíblico Moody. Vol. 3 – Isaías a Malaquias.Tradução de Yolanda M. Krievin, São Paulo: IBR, 1987, p. 340.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

A Verdade

Cristo afirma ser a “Verdade”. Não se nega, como valor abstrato, a existência da Verdade. Entretanto, se descermos ao nível das definições, haverá muitas controvérsias a seu respeito. Essa afirmação só pode ser corretamente compreendida se admitirmos que nEle todas as verdades estão contidas, sejam elas quais forem e de onde vierem.

MF

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

A KÉNOSIS DE CRISTO

(Uma breve visão histórica, teológica e gramatical)


Moisés Olímpio Ferreira



O TEXTO BÍBLICO E UMA PROPOSTA DE TRADUÇÃO:

FILIPENSES 2. 1-7

Se pois (há) alguma súplica (ação de chamar para estar ao lado de) em Cristo,
se algum consolo de amor pela narração de fatos,
se alguma comunhão de espírito,
se alguma entranha (sentimento) e compaixões,
dai plenitude à minha alegria, para que a mesma coisa penseis,
tendo o mesmo amor, unidos de alma, pensando aquilo que é um;
nada segundo a intriga ou glória vazia, mas com humildade
considerando uns e outros superiores a vós mesmos;
não as coisas de si mesmos fiqueis observando, cada um, continuamente
mas também, cada um, as coisas de outros.
Isso pois seja pensado entre vós o que também (foi pensado) em Cristo Jesus;
o qual, sob a forma de Deus existindo continuamente, não de forma violenta
[1] conduziu-se para o continuar sendo de modo igual a Deus,
mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo,
tornando-se (vindo a ser) em semelhança de homens;
e tendo sido achado em aspecto como homem,
humilhou-se, tornando-se submisso até a morte,
morte de cruz.


O termo ekénose em Filipenses 2.7 tem como tradução a palavra “esvaziou”. A partir desse termo, uma doutrina, chamada kenótica, ensinou que Cristo, na encarnação, se desfez de sua divindade, se esvaziou de sua deidade.

Antes, porém, de tratarmos especificamente do sentido do termo no texto aos filipenses, iremos observar o uso da palavra em outros versículos bíblicos para identificar o seu significado usual.
O verbo foi poucas vezes empregado no Novo Testamento. Considerando Filipenses 2.7, são apenas, no total, cinco passagens que o contêm. A forma adjetiva aparece mais (16 vezes) e há ainda alguns substantivos compostos com o adjetivo que aparecem 3 vezes.
Nós nos prenderemos ao verbo, procurando identificar o seu sentido dentro do contexto neotestamentário.

Desenvolveremos este estudo em algumas etapas:

1) Verificação do sentido do verbo no uso neotestamentário;
2) Análise da forma verbal;
3) História do pensamento cristão sobre a encarnação;
4) Análise do texto, em seu contexto, para interpretar o sentido do esvaziamento.

I) VERIFICAÇÃO DO SENTIDO DO VERBO NO USO NEOTESTAMENTÁRIO
Romanos 4.14

Se pois os da lei são herdeiros, a fé está vazia...
1Coríntios 1.17 (falando sobre o sustentar-se do evangelho, diz:)

“...não, pois, enviou-me Cristo para batizar, mas para evangelizar; não em sabedoria de palavra a fim de que a cruz de Cristo não seja esvaziada (tomada em desprezo).

1 Coríntios 9.15

“...não escrevi estas coisas para que assim venha a ser comigo; melhor coisa, pois, a mim é morrer que o motivo de minha vaidade alguém esvazie...”
2 Coríntios 9.3

“Enviei os irmãos para que o nosso motivo de vaidade – aquele que é em favor de vós – não seja esvaziado nessa parte.”


CONCLUSÃO 1
Por tais passagens, percebemos que o sentido do verbo no Novo Testamento é “tornar-se vazio”, geralmente em condições metafóricas. Dessa forma, esvaziou a si mesmo traduz bem o sentido de heautòn ekénose em Filipenses 2.7.


II - ANÁLISE DA FORMA VERBAL

Um segundo elemento a ser levado em consideração é o verbo, identificado pela sua forma. Trata-se de um verbo no aoristo, na voz ativa, modo indicativo:


VOZ:


Por estar na voz ativa, o sujeito é quem pratica a ação nomeada pelo verbo. Assim, o sujeito de ekénose é o pronome relativo (o qual) que está retomando alguém da frase anterior, isto é, Jesus Cristo. Dessa forma, quem realizou a ação de esvaziamento foi o próprio Jesus Cristo.

ASPECTO:


Por estar no aspecto verbal aoristo, ekénose está indicando uma ação pontual realizada no passado. Uma ação pontual, sem progresso, sem continuidade, que não permaneceu em curso. Não foi uma ação contínua ou permanente, mas feita em um momento enquadrado no tempo. Houve um esvaziamento num dado momento. O verbo apenas traz à memória o ato em si.

Em que momento? O próprio texto responde:

mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo,
tornando-se em semelhança de homens;
O esvaziamento ocorreu durante o período em Jesus Cristo fez-se carne e habitou entre nós.

MODO:

O modo indicativo refere-se a uma afirmação (não a uma hipótese), uma asseveração de algo realizado em determinado tempo. É uma proposição enunciativa em que o fato é tido, pelo enunciador, como real.
CONCLUSÃO 2

O “esvaziamento” foi ação real (modo indicativo) do próprio Jesus Cristo (voz ativa), demarcada pelo período de sua encarnação.

III - HISTÓRIA DO PENSAMENTO CRISTÃO SOBRE A ENCARNAÇÃO
Há muita polêmica nesse ponto. A questão toda se encontra no âmago da doutrina da encarnação. A questão da encarnação já vem sendo discutida ao longo dos muitos séculos antes da Reforma. Muitos pensadores, seja para defender a humanidade de Cristo, seja para enfocar o Sua divindade, elaboraram teorias para explicar o Cristo-Homem.

a) NEGAVAM A HUMANIDADE
Docéticos: Jesus teria apenas forma humana, mas era totalmente divino;

Monarquianos modalistas: o único e mesmo Deus se manifestou em 3 modos diferentes: Pai, Filho e Espírito Santo. Ficaram conhecidos também como patripassionistas (no ocidente) e sabelianos (no oriente).


b) NEGAVAM A DEIDADE

Ebionitas: Jesus foi escolhido por causa de sua piedade legal e, por ocasião do batismo recebeu a filiação – adocionismo;

Adocionismo de Hermas: Jesus homem, por sua dignidade, foi escolhido pelo Logos e, na ressurreição, foi constituído Filho;

Monarquianos dinâmicos: defendiam que Jesus foi um homem deificado pelo Logos.


c) NEGAVAM A PLENA HUMANIDADE

Apolinarianismo: O Logos – Espírito - estaria no lugar da alma humana, de modo que Jesus não era plenamente homem. Se Cristo assim fosse, teria pecaminosidade.
d) NEGAVAM A PLENA DEIDADE

Arianismo: O Logos foi criado por Deus em determinado tempo da eternidade. Ele foi apenas o primeiro a ser criado, e, embora especialmente escolhido por Deus para a obra criadora que posteriormente haveria de ocorrer, o Logos não era Deus, mas um deus.

Poderíamos ainda falar sobre o nestorianismo cuja doutrina afirmava que Jesus era apenas um homem natural acompanhado pelo Logos. Nestório via uma natureza divina e outra humana (duas naturezas distintas) sem uma unidade perfeita. Jesus Cristo não era constituído de uma só pessoa, mas de duas. Havia duas naturezas e duas pessoas. O homem Jesus era apenas o portador de Deus (o Logos). Jesus era, portanto, apenas theóphoros, portador de Deus.

Eutíquio (que deu origem ao eutiquianismo), mantendo a unidade de Cristo, já acreditava que Jesus Cristo foi a somatória das duas naturezas resultando uma terceira, fundida, sem distinção. Para ele, houve a fusão das duas naturezas (humana e divina) em Cristo. Os monofisitas, daí, acreditavam em uma só pessoa com uma só natureza, isto é, uma natureza composta de outras duas não distintas.
A teoria kenótica foi desenvolvida para tentar responder à questão: em que condições Cristo tornou-se homem?
Para enfatizar dois pontos importantes da encarnação (a humanidade de Cristo e a grandeza de Sua humilhação), o pensamento kenótico acredita que o logos de Deus reduziu-se a ponto de perder sua divindade até às dimensões de um mero homem para depois aumentar em sabedoria e poder até recuperar novamente a natureza divina.
Algumas nuanças podem ser encontradas nessa teoria em diversos teólogos:
1) Tomásio disse que: apesar de reter atributos como poder, liberdade, santidade, verdade e amor, o Cristo despiu-se temporariamente de Seus atributos de onisciência, onipresença e onipotência, retomando-os na ressurreição.
2) Gess dizia que o logos, na encarnação, reduziu-se de modo absoluto às condições e aos limites da natureza humana de tal maneira que Sua consciência tornou-se pura consciência de uma alma humana.
3) Ebrard propunha uma vida dupla do Logos. Por um lado, reteve e exercia as suas perfeições divinas na vida trinitariana. Por outro lado, reduziu-se às dimensões de um homem, dono de uma mera consciência humana. Assim, o mesmo “eu” existiria, concomitantemente, na forma eterna e na forma temporal, mostrando-se infinita e finita por igual modo.
4) Martensen postula no Cristo (Logos), durante o tempo da humilhação, uma vida dupla procedente de dois centros sem comunicação entre si. Como Filho de Deus, Ele continuava em Suas funções cósmicas trinitarianas; na forma de Logos despotencializado, Ele nada sabia dessas funções, e só se reconhecia ser Deus no sentido em que tal conhecimento é possível às faculdades humanas.

CONCLUSÃO 3

A questão da encarnação desenvolveu-se ao longo da História nas mais diversas teorias. Ora enfocando a divindade de Cristo, ora, a sua humanidade. Como pudemos observar, a questão de como o Eterno Filho se fez carne na pessoa de Jesus Cristo foi amplamente discutida pela Igreja durante os séculos passados. Como entender o Logos em sua encarnação era um dos problemas encontrados. Uns acreditavam que ele uniu-se a uma alma e corpo humanos (duas pessoas e duas naturezas), outros acreditavam que ele não tinha humanidade alguma (era totalmente divino), outros acreditavam que ele não era Deus, mas um ser especial etc.


Uma nova teoria foi a Kenótica que apresentou Cristo como a manifestação do Logos esvaziada da divindade, isto é, negou-se a divindade de Jesus, ou a tornou totalmente distanciada do Jesus-Homem.

A isso Berkhof afirma: “Estas postulações são contrárias à imutabilidade de Deus e não concordam com passagens das Escrituras que dão atributos divinos ao Jesus histórico.”
IV - ANÁLISE DO TEXTO, EM SEU CONTEXTO, PARA INTERPRETAR O SENTIDO DO ESVAZIAMENTO
O tema proposto neste trabalho é: EM QUE SENTIDO ELE ESVAZIOU-SE NA ENCARNAÇÃO?
Lembremo-nos que, para ser um salvador perfeito, Cristo deveria ser plenamente Deus (porque só Deus poderia nos salvar) e plenamente homem (porque o pecador inteiro necessita ser renovado). Essa foi a posição que a Igreja tomou para responder às mais diversas teorias a respeito do Logos-Homem. Ora, tendo isso em mente, voltemos ao texto de Filipenses.
O contexto ensina-nos quanto à questão da humildade; incita-nos a buscar não só o bem de si mesmo, mas aquele que também é de outros. Tal exemplo é encontrado na pessoa de Cristo, “...o qual, sob a forma de Deus existindo continuamente, não de forma violenta conduziu-se para o continuar existindo de modo igual a Deus”. Atentemo-nos ao fato de que ele renunciou tal forma sem procurar mantê-la a todo custo, à força. Ele voluntariamente a despiu.
O exemplo supremo vem do próprio Senhor. Sua superioridade e soberania são incontestáveis, mas Ele, embora estando permanentemente na forma de Deus (a ênfase não está sobre o Seu poder, Seus atributos, Suas divindade, mas sobre a Sua forma, Seu exterior, Sua majestade, Sua glória), não agiu em defesa de sua condição eterna, “...mas esvaziou a si mesmo, tendo tomado a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e tendo sido achado em aspecto como homem, humilhou-se, tornando-se submisso até a morte, morte de cruz.”
Dessa maneira, o objeto implícito da ação realizada de esvaziar-se não é a divindade de Cristo, mas o seu estado de forma de Deus, para forma de servo, tornando-se em semelhança de homens.
O contexto trata do assunto da humilhação, sendo Cristo o modelo maior da Sua Igreja. A encarnação foi um ato de amor profundo da parte de Deus, porém, o Logos não deixou de ser verdadeiro Deus. Assim, a forma de servo não deprecia, em nada, a forma de Deus.



[1] Taylor sugere: a ser cobiçado e retido como a leoa segura a presa ou o salteador seu espólio.